Apesar dos avanços significativos na investigação em oncologia pediátrica, os ensaios clínicos com terapias inovadoras como a CAR-T continuam a decorrer maioritariamente em países com melhores indicadores de saúde — e não onde o cancro pediátrico tem maior impacto. Um novo estudo alerta para esta desigualdade e propõe soluções concretas para tornar a inovação mais acessível.
As terapias com células CAR-T representam uma das mais promissoras abordagens de tratamento para alguns tipos de cancro pediátrico, sobretudo em casos de leucemia resistente a tratamentos convencionais. No entanto, um novo estudo alerta para a sua distribuição profundamente desigual: a esmagadora maioria dos ensaios clínicos decorre em países de elevado rendimento, como a China (161 participações) e os Estados Unidos (84), que juntos representam mais de metade da atividade global. Em contraste, países de baixo rendimento, incluindo todos os do continente africano, não participam em nenhum ensaio registado.
O estudo, publicado com base em dados da Global Observatory on Health Research and Development, analisou 414 participações em ensaios clínicos com terapias CAR-T para cancro pediátrico, distribuídas por 30 países. Apenas 28% destes ensaios decorrem em países que concentram 90% da carga global de cancro pediátrico. A maioria dos ensaios continua em fases iniciais (fase I e II), e incidem sobretudo em leucemias (51,5%), embora também abranjam tumores sólidos, linfomas e tumores cerebrais.
O estudo revela um desfasamento estrutural entre a carga da doença e o local onde se realiza investigação científica. A maioria dos países com maior número de ensaios apresenta melhores indicadores de saúde pediátrica — como menor mortalidade infantil e neonatal — em comparação com os países com menos ensaios. Estes dados indicam que a investigação em terapias avançadas continua a ser feita onde já existe maior capacidade técnica e científica, e não onde a necessidade é maior.
Apesar de se ter identificado uma correlação entre a mortalidade até aos 15 anos e a presença de mais ensaios clínicos, este resultado poderá estar enviesado pela forte participação de países como a China e os EUA. Outros indicadores relevantes, como a mortalidade abaixo dos cinco anos ou a mortalidade neonatal, não demonstraram qualquer associação significativa com a distribuição dos ensaios.
Os investigadores utilizaram ainda um modelo estatístico para identificar os principais preditores da existência de ensaios clínicos com CAR-T em cada país. Curiosamente, surgiram fatores como a mortalidade infantil por consumo de álcool ou por obesidade — não enquanto causas diretas, mas como indicadores de contextos sociais vulneráveis, onde coexistem múltiplos desafios estruturais.
Face a estes resultados, os autores apelam a uma estratégia coordenada para aproximar a investigação das reais necessidades de saúde pública. Entre as propostas apresentadas estão:
- criação de parcerias entre instituições de países do Norte e do Sul global, com partilha de protocolos, apoio estatístico e acesso a reuniões clínicas conjuntas;
- desenvolvimento de centros regionais de produção de vetores CAR através de acordos de transferência de tecnologia;
- utilização de desenhos de ensaios clínicos adaptativos, com menores custos por participante;
- reforço da capacitação local através de bolsas de estudo em áreas como bioinformática, economia da saúde e processamento celular;
- maior investimento público em ensaios locais, com orçamentos protegidos para farmacovigilância.
Este estudo reforça a urgência de tornar a inovação terapêutica acessível às populações pediátricas mais vulneráveis, muitas vezes excluídas dos avanços da medicina moderna. Para tal, será necessário um esforço global e colaborativo que garanta que os progressos científicos chegam, efetivamente, a quem mais deles precisa.
Fonte: Frontiers